Epígrafe Provisória

"Quanto mais a moda é feia, mais o povo acha bonito" - Juraildes da Cruz

Sons de sim – "Enfeites de cabocla"

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Ainda religião

A fé já foi bem mais transcendental outrora. Vivemos o tempo da mais vertiginosa mercantilização do sagrado.

Penso que o sagrado não tem preço. Ao menos não devia tê-lo. Por isso tento viver de modo mais comezinho diante do numinoso. Me farto do humano, busco a humanidade (que deriva de humus, a matéria mais chã e deteriorada, que recobre o solo) para não me avultar.

A alegria que carrego vem de uma inexplicável consideração de que o sagrado se esconde nas franjas da humanidade, nos recantos impensáveis das nossas fragilidades, as quais nós nos empenhamos constantemente para escondê-las pela dissimulação.

Na dissimulação, gêmea da simulação, nasce a arte. De modo que arte, religião e ciência são filhas "de um mesmo deus fugaz". Mas isso é um outro assunto...

Separada de suas irmãs, a religião, a cada dia, se esquece de sua identidade e porfia por granjear seguidores. Já não luta por se aproximar do misterium sanctorum.

Roger Bastide dizia que não se pode exorcizar os fantasmas de nossa religiosidade. Na realização poética, eles renascem mesmo a contragosto. Difícil discordar.

Onde será que habitam os meus demônios? Longe de dogmas, a arte – e por extensão o poema – perde todo e qualquer valor se for proselitista. Ela vive, somente, desse misterium sanctorum. O próprio Fernando Pessoa, em sua Nota Preliminar a Mensagem, expôs que para se entender os símbolos é mister cinco qualidades ou condições, das quais a

quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo
FP, OP, Mensagem, "Nota Preliminar", p. 69.

Segue-se Catedral, poema escrito em 2006, após visitar diversas catedrais em cidades como Montevidéu, onde me demorei observando A adoração dos pastores, reprodução 1:1, feita por um aluno, do original do pintor e mestre Gerardo delle Notti, ou Gerard van Honthorst, que admirava a Caravaggio.


Catedral


A donzela de grã-família
ajoelha-se pudente
lança seu olhar longo e pungente
mirando o altar da virgem santa
Sua piedade é tanta
e da beata carola,
que na catedral mora,
a virgem a tem por filha.

E ali compartilha
do olhar longo e pungente
um homem presente

– não é boa gente –

supõe a carola,
no morro ele mora,
mas é penitente,
não da virgem santa,
à donzela adora, e
num gesto ensaiado,
se vira de lado,
olhando nos olhos pungentes,
de sua virgem adorada.
Apeia o chapéu,
de todo respeito,
bate a mão no peito,
ajoelha-se com a amada.

Na fria catedral,
deseja a donzela a branca eternidade,
ao mirar a virgem adornada,
de branco vestida, de ouro cravada, num manto envolvida,
quando
um sussurro sintético, acanhado,
interrompe a doce calma,
no lúzio enfumaçado
frente ao trono episcopal,
seu pobre devoto:
“a virtude que tens
excede à da virgem
venero vossa imagem”.


Empalidecida,
de frio suor molhada,
derrama a donzela
lágrima vermelhada,
o lenço manchado

– sudário de um momento.

Um comentário:

Sidarta Martins disse...

tá colocado no Na Cal!

Agora eu voltarei a ser seu colega na Letras.

Abraços,