Aproximadamente um terço de todo o nosso tempo passamos dormindo. Esse período, longe de ser perdido, é bastante fértil aos sonhos. Não sei explicar esses fenômenos de pouca definição. Se bem me parece, Freud deu razões da ocorrência dos sonhos e até explicou algumas tipificações, porém não pôde nem de longe resolver todas as especulações que surgem em torno desta fantástica realidade.
A nossa miséria é que os sonhos têm o poder de nos perturbar. Quando intensos demais, provocam um delírio fremilúcilo, no qual vislumbramos sombras e dissipações.
Muitas das vezes os sonhos não retornam. Abandonando-nos, deixam-nos sem razões para a razão. Considero o sonho par da arte e da religião, mães mais férteis das visões oníricas. Dante, em A Divina Comédia, arquitetou os sonhos mais terríficos que o ser humano já sofreu, fruto do descompasso entre o paraíso desejado e o inferno que se assenhora do viajor e o envolve em espessa treva: "Nel mezzo del cammin di nostra vita/ mi ritrovai per una selva oscura/ ché la diritta via era smarrita". Cervantes fez da utopia do tradicional mundo cavaleiresco o sonho e a ruína de Dom Quixote, cuja trajetória, embalada por ideais ultrapassados que sistematicamente foram descartados pela realidade moderna, levou-o a sucumbir sem jamais poder desfrutar de seus ideais, a não ser nos momentos – e foram tantos – de entrega aos seus devaneios. Mas se o sonho confunde-se com loucura, tratamos de negá-lo em algum momento:
"-Perdóname, amigo, de la ocasión que te he dado de parecer loco como yo, haciéndote caer en el error en que yo he caído, de que hubo y hay caballeros andantes en el mundo."
É nos sonhos que encontramos o nosso eu mais primitivo e ao mesmo tempo nos perdemos totalmente em relação ao mundo de ditames que nos enlaça cotidianamente. Quem se lança ávido nessa diretriz possivelmente não colherá aquilo que busca, exceto a própria busca.
Minha amiga e incisiva cronista Amanda Osti deixou-nos o conto Pó-de-arroz, que dialoga de modo provocador com as nossas precárias percepções sobre o cadafalso onírico, onde os elementos que nos parecem não são e nem podem ser tal como se apresentam. Amanda mantém o pseudoconfidente blog joana, a louca de flandres. Lá você vai poder ler depoimentos de uma personagem construída de modo muito refinado, que reflete indecisivamente a personagem da vida real. O melhor desses textos fica por conta do olhar que capta no banal das coisas sua futilidade e devolve com ironia sarcástica o frágil retroz com que é cosida as convenções idiotas que recobrem as desvios pessoais e coletivos.
Deixei quatro poemas que parecem dispersos diante do tema proposto. Ao menos sinto o fragor do éter, ainda que de modo diverso, em cada um. Rosto oculto é o primeiro excerto de um poema maior chamado "Rostos". Rostos escapam em muitos dos nossos sonhos, e não nos lembramos com correção de alguém com quem tivemos relações divagantes, não precisando o grau que atingiu essa quase interação. A sombra pode se referir ao efeito que fica após um sonho. O sonho não é a nossa realidade, mas uma correspondência específica e que precisa ser compreendida dentro de certos limites. Como a sombra, os sonhos sempre nos acompanham e nos refletem de algum modo. No poema Bushiana manifesta-se o resíduo que um evento que se torna sentimento de impotência, talvez aparentado com a compreensão desiludida e quixoteana (isso mesmo, não é quixotesca) de quem percebe que algo mais forte derrubou suas utopias. É incrível como as utopias caíram nos últimos tempos e como não existem quase perspectivas de que outras se levantem. Finalmente, Breviário noturno remete a sonhos que se sonham mesmo acordado. A noite em claro não impediu o diálogo com o sonho, que se impôs contra um notívago eventual. Ainda bem. Sonhos são fortes e mal faz quem os despreza. Mesmo que você não seja daqueles que se entregam aos devaneios – e ninguém o faz impunemente – procure respeitar e compreender, na medida do possível, o que dizem seus sonhos.
Aproveito para dizer que Cesária Évora não canta apenas, mas traduz e encarna todo o sentimento, chamado morabeza, que define e especifica o sentido de ser de Cabo Verde. Sua voz agita aos sentimentos como o mar balança-se no dia-a-dia desse fascinante arquipélago africano.
Indico aqui o blog do meu colega Rodrigo Borges, o estado de circo, que completou um ano na net. Traz comentários pertinentes de notícias nem tão pertinentes. Informa e entrete de modo inteligente quem lê seus posts. O Rodrigo integra também a banda 4Free, que tem até comunidade no orkut.
Bem, para postar tudo isso, perdi uma noite de sono, e talvez um ou outro sonho. Boa leitura!
2 comentários:
Esse tal Rodrigo deve ser bom. hahaha. Valeu, Silvio.
[ www.estadodecirco.net ]
Esse Rodrigo deve ser bom. Hahaha! Valeu, Silvio.
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